Essa relação é um exemplo clássico de como o intercâmbio cultural e as condições naturais podem moldar a história de uma bebida
Por Júlio César Kunz e Patrícia Binz
Diretor de Vinhos e Diretora de Marketing da ABS-RS
Montagem sobre foto de Jabez Cutamora/Pexels

O Champagne é uma bebida icônica, carregada de história e tradição. Além do seu requinte, existe um elemento de identidade regional, pois “Champagne” é uma Denominação de Origem Controlada (Appellation d'Origine Contrôlée, em francês) restrita exclusivamente aos vinhos espumantes produzidos na região homônima da França. No entanto, o sucesso e o reconhecimento internacional não seriam os mesmos sem a histórica e singular relação com o Reino Unido.
Para entender essa relação, é essencial perceber que o interesse dos ingleses por vinhos espumantes tem raízes seculares e foi fundamental no desenvolvimento da bebida como a conhecemos hoje. Neste artigo, exploraremos como fatores culturais, climáticos e tecnológicos moldaram essa conexão e abriram caminhos para a expansão do Champagne, tanto na sua forma como no seu prestígio global.
1. As origens do Champagne e as influências culturais inglesas
Historicamente, a produção vinícola na região de Champagne remonta à época do Império Romano, quando as primeiras vinhas foram plantadas. Contudo, a transformação do vinho local em espumante ocorreu gradualmente e envolveu séculos de adaptação. Uma lenda remonta ao rei franco Clóvis, o primeiro monarca cristão da região, cuja conversão ao cristianismo foi celebrada com a bebida. Desde então, passou ser oferecida como presente em feiras comerciais medievais, marcando um início simbólico da valorização deste produto.
Os ingleses, por sua vez, foram dos primeiros estrangeiros a apreciar e incentivar o consumo do vinho espumante de Champagne. Ao longo dos séculos XVII e XVIII, o mercado inglês tornou-se um dos principais consumidores de rótulos franceses, especialmente aqueles provenientes de Champagne. A proximidade geográfica e a conveniência dos canais de navegação facilitavam o comércio, mas foi a preferência dos ingleses por vinhos com borbulhas que realmente impulsionou as mudanças tecnológicas na região.
2. A Influência tecnológica inglesa no desenvolvimento do Champagne
Um aspecto menos conhecido, mas essencial, é o papel dos ingleses no desenvolvimento do vidro resistente necessário para armazenar champagne. No século XVII, os ingleses começaram a experimentar técnicas de fabricação de vidro, adicionando minerais como o magnésio, o que resultou em um vidro mais espesso e resistente. Embora essa inovação tivesse inicialmente outros propósitos, acabou por resolver um problema crítico para os vinicultores: a dificuldade de conter a pressão das borbulhas.
Antes dessa inovação, as garrafas frequentemente explodiam, levando ao uso de máscaras de ferro pelos trabalhadores para se protegerem. O vidro inglês, mais robusto, permitiu que a bebida fosse finalmente armazenada em garrafas seguras, possibilitando o transporte e a comercialização em larga escala. Com o tempo, a indústria francesa adotou esses vasilhames e, em 1729, a primeira “Maison” de Champagne, a Ruinart, iniciou sua produção de forma comercial.
Além do vidro, os ingleses também foram pioneiros no uso do termo “método tradicional” ou “método champenoise”. A segunda fermentação em garrafa, que cria as características borbulhas do champagne, já era praticada em Limoux, na França, desde 1531, mas os ingleses foram os primeiros a documentá-lo e a refiná-lo. Em 1662, o cientista inglês Christopher Merret detalhou o processo de adição de açúcar e leveduras para induzir a segunda fermentação, um passo essencial no método de produção que ainda é usado atualmente.
3. O Papel das condições climáticas no crescimento de espumantes do Reino Unido
O aquecimento global também trouxe mudanças significativas para a viticultura, permitindo o desenvolvimento de vinhedos na Inglaterra. Em décadas recentes, as temperaturas mais altas e os verões mais longos criaram condições favoráveis para o cultivo de uvas de alta qualidade no Reino Unido, especialmente em regiões como Sussex e Kent. Como resultado, a Inglaterra passou a produzir espumantes com uma acidez vibrante e um frescor que lembra os vinhos de Champagne. Esses vinhos ingleses agora competem no mercado internacional, aumentando ainda mais a rivalidade amigável com os produtores franceses.
4. A Relação de consumo e o impacto na definição de estilos de champagne
Os ingleses foram consumidores exigentes e, muitas vezes, sua preferência influenciou o perfil do champagne ao longo dos anos. Durante o século XIX, por exemplo, a bebida era muito mais doce do que o estilo “Brut” popularizado hoje. Esseb perfil adocicado foi preferido pelos ingleses até o surgimento do Brut Nature no final do século. A influência dos consumidores britânicos ajudou a moldar os níveis de dosagem, adaptando o produto ao gosto contemporâneo.
A relação comercial entre Champagne e o Reino Unido sobreviveu a crises e guerras, incluindo a Segunda Guerra Mundial, quando os alemães tentaram reduzir o prestígio do champagne. Durante esse período, o Comitê Interprofissional do Vinho de Champagne (CIVC) foi criado para proteger e promover o champagne no mercado internacional. Este comitê ainda desempenha um papel crucial na proteção da denominação de origem e no marketing global da bebida.
5. A Promoção da arte e cultura em Champagne: a evolução da imagem da bebida
Foto de Júlio César Kunz

Para além da técnica, o champagne se destaca como um produto cultural que transcende fronteiras. Na região, eventos que combinam gastronomia, arte e tecnologia têm ajudado a solidificar a imagem da bebida como sinônimo de sofisticação. Um exemplo recente é o uso de inteligência artificial em exposições de luzes que ilustram as mudanças climáticas e sazonais nos vinhedos. Esses eventos, que mesclam tradição e inovação, capturam a essência do champagne e aumentam seu apelo global, promovendo a cultura local e criando conexões com admiradores do mundo inteiro.
Conclusão: a indispensável contribuição inglesa para o sucesso do champagne
A história do champagne não seria a mesma sem a influência do Reino Unido. A paixão dos ingleses pela bebida não só impulsionou o desenvolvimento de tecnologias que tornaram o espumante de Champagne viável como produto, mas também ajudou a moldar o seu perfil ao gosto internacional. Hoje, o Reino Unido continua sendo um dos maiores mercados para esse produto, enquanto os espumantes ingleses ganham destaque como uma expressão de qualidade e singularidade.
Essa relação entre champagne e o Reino Unido é um exemplo clássico de como o intercâmbio cultural e as condições naturais podem moldar a história de uma bebida. No caso do champagne, um produto inicialmente de difícil manuseio e pouco valorizado na França encontrou nos consumidores ingleses seu primeiro mercado fiel. A evolução do gosto, a criação de métodos de produção, e o aperfeiçoamento das garrafas são legados dessa parceria transnacional que, mesmo após séculos, segue vibrante e inabalável.
Champagne se consolidou como símbolo de celebração e sofisticação, enquanto o Reino Unido continua a ser uma peça fundamental na sua história. Essa sinergia de forças continuará a moldar o futuro da bebida e garantir seu lugar de prestígio mundial no universo dos vinhos.
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