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As inclinações musicais dos espumantes

Os vinhos elaborados por diferentes produtores em distintas regiões sempre terão expressões próprias e que precisam ter seu nome protegido para a sua devida valorização


Martha Caus

Festival de música, teatro e dança em meio aos parreirais do Vale dos Vinhedos exemplifica a ligação íntima entre cultura e terroir



Por Júlio César Kunz, presidente da ABS-RS


"Quem inventou o amor teve certamente inclinações musicais."

Geraldo Azevedo


A tipicidade é o elemento articulador do conceito de terroir. Sem querer tocar nas questões sobre se algum fator predomina sobre os outros e menos ainda tentar identificar o papel dos fatores humanos, o fato é que essa ideia complexa de territorialidade gira em torno daquilo que esse conjunto expressa no vinho – ou em outros produtos. Com todo respeito a quem defende um predomínio dos aspectos da natureza na expressão da bebida de Baco, acredito que os fatores culturais são extremamente relevantes, afinal, eles são a própria condição de possibilidade de um vinhedo simplesmente existir, bem como os vinhos. Quando se tratam de vinhos espumantes, as mãos e as mentes de mulheres e homens que trabalham da vinha às cavas têm um peso ainda maior. Um pouco como a execução de uma música: quem tem mais peso, o autor, o instrumento ou quem executa?


O vinhedo de Champagne foi plantado sobre um terreno paupérrimo para se tornar a grande referência de vinhos espumantes e de luxo no mundo, com o custo de muito trabalho, investimentos e resilência. O que foi erigido sobre os subsolos de giz da região vitivinícola da França é único, irreproduzível, inimitável. Não basta importar tecnologia, é insuficiente estudar os métodos, pois o savoir-faire vai além disso. Mais ainda, a combinação de clima, relevo, solos, subsolos e microrganismos do ambiente em conjunto com essa sabedoria multicentenária culminam em características sensoriais que, com mais ou menos experiência e estudos do degustador, ficam evidentes na taça.


Se a originalidade é o grande valor de qualquer vinho, a sua tradução é o nome. Um enólogo pode perfeitamente se inspirar em outro, uma vinícola pode seguir o estilo de uma concorrente, mas tanto o profissional quanto a empresa deixarão a sua marca nos seus vinhos e usará, por óbvio, o seu nome e a sua marca. Com regiões vitivinícolas não é diferente – mesmo que alguém acredite diferentemente (e pur si muove). A proteção do nome Champagne não pode ser comparada a uma questão de marca comercial. Essa sequência de letras "C-h-a-m-p-a-g-n-e" sintetiza exatamente o conceito mais caro a todo enófilo ou profissional do vinho que trate a bebida milenar como merece. Por isso, apreciar os vinhos dessa região, conhecer a sua história, respeitar o rigor de seus processos e reconhecer que o uso dessa palavra fora da AOC é uma usurpação indevida e uma tentativa de ludibriar quem conhece menos, não é desprezar outros espumantes do mundo. Ao contrário! É valorizar a beleza da diversidade.


É claro que, da mesma maneira que uma criança só é batizada depois que nasce, uma região vitivinícola só tem seu reconhecimento depois de ganhar reputação. E antes disso, pode acontecer de seu nome ser usado de diferentes maneiras.


Como diz a canção de Geraldo Azevedo, "quantas canções parecidas e tão desiguais, como as coisas da vida, coisas que são parecidas feito impressões digitais".


Os espumantes espanhóis, por exemplo, reconhecidos por sua qualidade desde o início do século XX tiveram um longo caminho até o seu batismo e reconhecimento como DO Cava – com um grande incentivo da União Europeia (UE), que exigiu o respeito a seu sistema de indicações geográficas. Mas justamente o abandono dos nomes ligados a Champagne fez Cava se consolidar como vinhos únicos, por sua vez também inimitáveis, conquistando seus próprios consumidores apaixonados – com seu "amor diferente demais".


No Brasil, temos nossas próprias indicações geográficas que reconhecem a tipicidade e reputação da qualidade de alguns de nossos espumantes. A primeira denominação de origem do Brasil, DO Vale dos Vinhedos, nos brinda com espumantes redondos, com um belo frescor e complexidade aromática sem perder a fruta. A única denominação de origem do Novo Mundo exclusiva para vinhos espumantes também é brasileira, e Altos de Pinto Bandeira expressa uma acidez vivaz como em poucos lugares do mundo. Vale também mencionar a IP Farroupilha, com seus espumantes moscateis extremamente equilibrados e aromáticos. Citando apenas essas três que, hoje, têm mais foco em espumantes, fica evidente o quanto é desnecessária qualquer comparação com vinhos franceses, espanhóis, italianos ou de qualquer outra origem para que possam ser valorizados e ocuparem o seu lugar no mercado.


Prosecco é tomado como um caso à parte dessa discussão por historicamente designar também a uma uva. Mas não é o único caso de mudança de nome de uva para proteger uma região após o seu reconhecimento como indicação geográgica. Melon de Bourgogne, que se expressa bem na sub-região mais oceânica do Loire, teve seu nome modificado para Muscadet. Igualmente, alsacianos e friulianos abandonaram o nome Tokay, classicamente usados nas suas regiões como nomes de uvas, após o reconhecimento da denominação de origem Tokaji pela UE. Os australianos deixaram passaram a chamar sua uva emblemática de Shiraz, abandonando o tradicional nome de Hermitage para sentar à mesa do mercado internacional.


Questões jurídicas podem fazer o texto ficar enfadonho, então vou para um exercício diferente, sem deixar de lado o meu ponto. O que você pensaria se um produtor argentino, por exemplo, resolvesse elaborar um vinho com a uva Brunello? Pois é, Brunello di Montalcino é uma DOCG, mas Brunello é também o nome local da uva Sangiovese. Quero aplicar essa analogia para o que se pode pensar sobre o nome Prosecco – há séculos fazendo referência tanto a uma uva e quanto aos vinhos elaborados na região. Hoje, identificando um conjunto de denominações de origem.


Cada um dos nomes que citei podem e devem gerar muitos debates mais. Mas é importante irmos além das discussões que cada um desses casos gera e pensar profundamente no seu significado. Assim como uma canção interpretada por diferentes músicos soa sempre uma nova música, os vinhos elaborados por diferentes produtores em distintas regiões sempre terão expressões próprias e que precisam ser batizadas para a sua devida valorização. As características desses vinhos não devem ser julgadas como melhores ou piores, mas serem consideradas em suas singularidades. O respeito aos nomes e às origens não obrigam a uma conexão necessária à tradição (vide o brilhante exemplo dos expressivos e originais vinhos neozelandeses). Fugir das comparações em busca de uma expressão única sempre fez bem aos vinhos de todo o mundo. E será ainda melhor aos produtos brasileiros, que merecem ser reconhecidos e valorizados pelas suas próprias qualidades.



Sobre o autor

Júlio César Kunz, possui mais de 20 anos de experiência no mundo do vinho, é Engenheiro de Alimentos (UFRGS – Porto Alegre), Mestre em Vinhos (Universidade de Paris/ OIV – França) e Especialista em Empreendedorismo e Negócios Internacionais (MIB Trieste – Itália). Conta com passagem profissional por diversas vinícolas no Brasil, na Espanha e na Itália, atuando nas áreas técnica, estratégica e comercial.

Sommelier profissional (ABS-Brasil/ASI), atua como consultor e professor em diferentes instituições. É ainda Formador Expert na DO Cava e Embaixador de Bordeaux no Brasil, formador credenciado pela École du Vin de Bordeaux (CIVB). Também é psicanalista premiado atuando em pesquisa e ensino no Centro de Estudos Psicanalíticos de Porto Alegre/ Serra (CEPdePA/Serra), e em consultório particular.

 


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